Por José Farid Zaine
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Você começa a ver o filme “A
Caça”, e sabe apenas que se trata de um
filme dinamarquês dirigido por Thomas Vinterberg, um dos criadores do movimento
Dogma, que colocou o cinema da Dinamarca sob os olhares do mundo em 1995.
“Festa em Família”, o melhor filme dele
até o lançamento desta obra-prima que é “A Caça” (Jagten), era uma verdadeira demolição de uma família
através de contundentes revelações, que incluíam uma crua exposição de abuso
sexual cometido pelo patriarca, que tinha culpa no cartório. Logo no início de
“A Caça”, somos apresentados à personagem principal, um monitor de uma escola
de educação infantil chamado Lucas. De cara o espectador gosta muito de Lucas,
vê seu amor pelas crianças, é informado – pelas discussões que ele tem ao
telefone com a ex-esposa – de que Lucas
é pouco ambicioso e quase não tem chances de ficar com a guarda do filho
adolescente.
Lucas é interpretado de forma
absolutamente brilhante pelo ator Mads Mikkelsen, também presente no
representante da Dinamarca no Oscar deste ano, “O Amante da Rainha”, e mais conhecido pelo papel de vilão –
irrepreensível – que desempenhou em “007 – Cassino Royale”. Por sua atuação
como o simples e sensível monitor de “A Caça”, Mikkelsen ganhou o prêmio de melhor ator em Cannes. É
um justíssimo reconhecimento internacional por um trabalho soberbo, que o
coloca entre os melhores atores do mundo de sua geração.
Neste filme o espectador é
imediatamente também apresentado a uma outra personagem fascinante: a pequena
Klara, de pouco mais de 5 anos,aluna da escolinha e que adora Lucas. Ela é
filha do melhor amigo dele, e muitas vezes, por ter confiança total desse
amigo, é ele quem leva a menina para
casa. A família de Klara é cheia de problemas, e ela tem hábitos de sair de
casa sem ser notada, daí ficar perdida e precisar de Lucas. A menina deseja
demonstrar seu amor ao Professor e lhe dá um presente. Lucas o recusa
delicadamente, mas a rejeição fará com que Klara pense em castigá-lo, com as
armas que pode ter em seu universo infantil. A esta altura, o espectador está
completamente inserido na pele de Lucas, e passa a viver os sentimentos dele.
Klara, uma lourinha angelical de olhares enigmáticos,vivida com categoria
profissional pela garota Annika Wedderkopp, inventa para a diretora da escola
que Lucas a teria molestado sexualmente, pois teria mostrado seu pênis a ela
dentro da escola. Um ato abominável, um crime hediondo, uma coisa horrível,
portanto,que não permitiria outra coisa senão condenar imediatamente, sem
questionamentos, o asqueroso monitor. Desde esse momento, sabemos que é uma
mentira da menina, e começa, juntamente com o sofrimento da personagem,Lucas,
nossa angústia. O que pode uma declaração desse tipo causar numa diretora de
escola que diz que as crianças não mentem jamais? Um tipo de cegueira
irracional, que logo é compartilhada pelo assistente social,e que se alastra
rapidamente entre os pais dos alunos e famílias que compõem a comunidade.
Estamos falando de uma pequena cidade do interior da Dinamarca, onde todos se
conhecem, onde todos os adultos compartilham as mesmas brincadeiras, as mesmas
comemorações, os mesmos hábitos. A indignação do espectador só cresce e se
transforma num incômodo nó no estômago,que ele não tem como combater, assim
como Lucas. Acuado, como os cervos que são caçados por esporte na comunidade, ele
apenas pode se ver desprezado, combatido e odiado, tentando se manter em pé com
dignidade, pela plena consciência de sua inocência. A polícia, é claro, não
consegue mantê-lo preso, porque não há provas contra ele. Mas para a
comunidade, que encontrou um bode expiatório, nada há a fazer também senão
despejar sobre ele a irracionalidade do seu desejo de que alguém pague por uma
culpa desenhada com as cores do ódio coletivo.
Temos visto, e não raramente, o
cinema tratar da mentira e do pré-julgamento, e com isso produzir filmes
magníficos. Vale a pena rever o extraordinário drama de Wylliam Wyler “Infâmia”
(The Children´s Hour), com antológicas interpretações de Shirley Maclaine e Audrey Hepburn. Aí uma
aluna maldosa faz um comentário venenoso, e duas mulheres tem suas vidas
reviradas. Mas a “infâmia” proferida pela menina tinha no fundo uma dolorosa
verdade, que era ocultada com grande sofrimento. Em “A Caça”, o diretor
Vinterberg imediatamente trata de mostrar que Lucas é inocente, por isso não
importa que eu esteja aqui contando a história. Não basta saber o roteiro, o
resumo,a sinopse, para que se saiba do que realmente trata “A Caça”. É preciso
vê-lo e entrando completamente na pele
de Lucas, sofrendo com ele cada segundo de seu calvário provocado pelo poder
nefasto do pré-julgamento.
E com o final atordoante do filme
– terrível por sua ambiguidade - voltamos ao nosso cotidiano, mais convictos de
que nossas vidas, de repente, podem ser remetidas ao inferno nas asas de uma
mentira.
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