Por José Farid Zainefarid.cultura@uol.com.br
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“O Moço acordou meio atordoado. Dois dias de festas por ocasião do Natal, muita comida e um certo exagero na bebida. Tocou o telefone, ele atendeu enquanto ligava a TV. Falava com um amigo enquanto mudava de canal com o controle remoto, inteiramente desinteressado. Ria das coisas “malucas” que tinha aprontado nas noites de farra. Na telinha, umas imagens fortes, algum filme de ficção científica vindo por aí, e a TV já se adiantava mostrando cenas cheias de efeitos especiais dignos de um Oscar. Mas as exibições não paravam. Quando acabou a conversa, aumentou o volume da TV e começou a compreender o que se passava. Aquelas imagens espetaculares de águas violentas derrubando tudo, engolindo gente, o mar avançando com fúria sobre praias, hotéis, corpos arrastados como meros objetos....aquilo tudo era verdade: uma catástrofe se exibindo, ao vivo, humilhando as mais sofisticadas técnicas de criação de efeitos visuais. Ele ficou ali, o resto do dia, a cada minuto se surpreendendo mais com as estatísticas do horror.
O Moço começou a revisitar seus conceitos e suas crenças. Pensou, a princípio, que a natureza era cruel, não era mãe coisa nenhuma, era mesmo uma madrasta perversa. E Deus, onde estava? Não via seus filhos amontoados, reunidos em meras pilhas de cadáveres? Não se compadecia? Então Deus não se importava com aquelas crianças mortas, aquelas mães desesperadas, aqueles novos órfãos perambulando por ruas destruídas, escombros, sujeira?
O Moço tentou fazer uma oração, mas seu coração estava duro demais. Achava que não valia a pena ter fé. Esse sentimento o acompanhou pelo resto do dia, no dia seguinte e nos subsequentes. Foi entrando na sua rotina com um certo desconforto por estar tão bem instalado, numa casa forte, com comida boa e farta, rodeado de seus brinquedos eletrônicos conectando-o com o mundo, seus filmes, seus discos...
A TV não se cansava de cravar os olhos sobre aquela parte devastada do Planeta. E então algumas histórias ganhavam espaço. Numa delas, a moça aparecia viva, depois de dias boiando no mar agarrada a uma espécie de coqueiro. Em outra, uma criança resgatada com vida depois de flutuar sobre um colchão, também por vários dias. Tocou fundo o coração do moço a história da mãe agarrada a dois filhos pequenos, tendo que escolher qual soltaria à fúria das águas, porque não conseguiria segurar os dois; depois de consumada a mais dramática escolha possível para uma mãe, aos olhos do pai aterrorizado e impotente, o final mais feliz acontece: os quatro, sãos e salvos, se abraçam numa cena milagrosa. “Só no cinema mesmo isso acontece”, pensaria o moço, caso estivesse vendo um filme de ficção. Mas não. Ali estava o milagre, presente, inteiro, ao vivo para todo o mundo, para as plateias de crentes e ateus.
O Moço voltou a revisitar seus conceitos e sua fé. Chegou a ficar envergonhado pelos seus momentos de dúvida, pelas suas blasfêmias. Voltou a orar, com um fervor que não experimentava há muito tempo. Pediu paz às almas daqueles milhares de cidadãos do mundo, pediu fé e amparo para aqueles que vagavam por um mar de fome, miséria, doença e saudade. Viu a TV mostrar o mundo inteiro mobilizado numa ação de solidariedade nunca vista antes. Quis dar sua cota de contribuição, procurando uma forma de fazer uma doação. Seu coração estava triste, mas sua alma não tinha sido tragada pelo tsunami. Imagens iam e vinham na sua cabeça. Como uma onda.”
O texto acima foi escrito por mim e publicado em janeiro de 2005, poucos dias após o tsunami que devastou o sudeste asiático, matando dezenas de milhares de pessoas. Ao ver o filme “O Impossível”, em cartaz nos cinemas brasileiros desde a semana passada, procurei o texto nos meus arquivos, e vi que os sentimentos despertados em mim pelo filme estavam presentes no artigo, mais do que eu poderia colocar numa crítica, daí o desejo de compartilhá-lo com os leitores, no último fim de semana de 2012, o ano em que o mundo ia acabar, mas não acabou. Continuamos firmes, alimentando nossa fé em Deus e nos homens de boa vontade.
“O Impossível” chega em boa hora, trazendo ótimas interpretações de Naomi Watts e Ewan MacGregor, como o casal que resolve ir passar férias na Tailândia com os três filhos pequenos, num lugar paradisíaco, logo transformado numa sucursal do inferno. Em meio a tanto horror e desolação, eis que brilha a luz da fé e seu poder, o que faz balançar o coração do mais insensível dos mortais, assim como aconteceu com o “Moço” do artigo de 2005.
O cinema, neste fim de 2012, faz acender nos corações e mentes das pessoas pelo menos a reflexão sobre a fé, o destino, a existência de Deus e o poder da natureza. Dois filmes nos conduzem a esse exercício tão necessário: “As Aventuras de Pi”, de Ang Lee, um dos mais belos filmes do ano, e esse “O Impossível”. Ambos nos envolvem, nos engolem em tsunamis, nos colocam como náufragos sobre mares revoltos, mas nos devolvem à vida com o sentimento de que tudo é possível quando a fé sobrevive. E é essa fé que eu desejo que permaneça nos corações de todos em 2013, e que ela mova nossos sonhos e desejos em direção aos finais felizes. Como no cinema.